por: Sara Aleixo
Lisboa, Maio de 2000
O
Rosto da Dança

1. A
Expressão Facial como Veículo
da Emoção
A emoção é um fenómeno
complexo, objecto de estudo de variadas
disciplinas, como a biologia, psicologia,
psiquiatria, antropologia, sociologia,
filosofia, e está sempre presente
nas expressões artísticas,
em particular, na literatura e artes cénicas.
A sua definição é,
portanto, difícil e assume vários
aspectos de complicada categorização.
Podemos, no entanto, estabelecer três
pontos de partida consensuais, para a
sua análise: 1) os processos neurofisiológicos
implícitos, relacionados com a
função de adaptação
e necessidade fisiológica (como
as sensações de sede, dor,etc.);
2) a expressão, ou o comportamento
emocional, com função social;
3) a experiência subjectiva, ou
o aspecto consciente da emoção,
no sentido da percepção
individual do eu e do envolvimento. Temos,
assim, que a emoção tem
origem numa experiência subjectiva
e individual ou mediada pela cultura e
aprendizagem, bem como uma pré-determinação
ontogenética. Estas categorias
de análise, permitem uma definição
mais completa da emoção
como "um conjunto de processos
neurológicos, que dão origem
a uma configuração particular
de comportamentos expressivos e a um sentimento,
estado ou qualidade de consciência
específicos, com funções
adaptativas e motivacionais".
A emoção está, por
todas estas razões, na raíz
da civilização, desde o
instinto de sobrevivência, ao comportamento
moral, regulando as relações
entre os indivíduos, e activando
os processos cognitivos e criativos. É
um fenómeno universal, todas as
culturas o exprimem, de formas diferentes,
mas com as mesmas características
funcionais.
A emoção funciona como
um processo de comunicação
e, a face, o seu primeiro instrumento.
O olhar, é o primeiro contacto
entre duas pessoas que se acabam de conhecer,
entre a mãe e o seu bébé
recém-nascido, é assim que
se falam nos primeiros tempos. É
no olhar que primeiro dizemos o que
pensamos, sentimos, e, mais do que nos
lábios, é com os olhos que
sorrimos.
Esta necessidade primária de comunicação,
parece ser constante no Homem, e ganha
sempre mais expressão, quase significando
uma necessidade de se fundir no outro
para se dar a conhecer e exprimir as suas
mais profundas dúvidas, à
procura duma solidariedade ou duma resposta.
Parece ser esta a necessidade transposta
para as manifestações artísticas,
desde os primórdios da evolução
humana. A dança, e a arte, no geral,
são uma expressão social
destes fenómenos emocionais. É
na arte, que todos os povos se dão
a conhecer através dos tempos,
nela, mostrando as suas ideias, desejos,
ansiedades...
2. Alguns
Dados sobre a Neurofisiologia da Emoção
Darwin atribuíu às expressões,
ou à "linguagem das emoções",
o meio de comunicação entre
todos os seres humanos, independentemente
da cultura ou origem étnica. Para
Jung, a emoção é
a força primária da vida,
é ela que dá origem ao movimento
e à mudança.
No entanto, somente a partir de meados
do século XX, começaram
a surgir investigações mais
profundas acerca da importância
da emoção, enquanto fonte
de energia para a acção,
desde a saciação da fome
à procura da satisfação
sexual.
A neurofisiologia explica a emoção
como uma transmissão da informação
recebida pelos receptores primários
(audição, tacto, visão)
ao sistema límbico, viajando do
Tálamo à Amígdala
e gerando uma reacção anterior
ao próprio conhecimento da causa.
A emoção activada por uma
informação mais complexa,
relacionada com o pensamento e a memória
e que exija uma discriminação
do estímulo, é transmitida
pelo Tálamo ao Cortex Cerebral.
Estes dados indicam que, num estado primário
da evolução humana, a expressão
da emoção deriva de um processo
automático de resposta ao estímulo,
tornando-se o Cortex mais envolvindo,
à medida que as capacidades cognitivas
vão evoluindo.
A componente expressiva da emoção
inclui a actividade facial, vocal, postural
e gestual. A expressão facial parece
ser o principal veículo de sinais
emocionais e é inervada pelo nervo
facial, que transmite as mensagens do
cérebro aos músculos da
face, e pelo trigémio, que transmite
ao cérebro os movimentos captados
pelos mecanorreceptores, localizados na
pele e músculos da face. Este circuito
de feedback indica que, assim como o cérebro
tem controlo sobre a expressão,
também a própria expressão
pode causar uma resposta por parte do
cérebro, ou seja, também
ela pode causar uma emoção.
Investigações recentes
mostram que, o controlo sobre a expressão
facial, pode desencadear um processo no
sistema nervoso autónomo de transformação
da emoção, o que é
particularmente interessante no que diz
respeito à dor e à sua atenuação
por este mecanismo consciente. Nas artes
representativas, como o teatro ou a dança,
esse controlo sobre a expressão
é fundamental, na reprodução
de emoções.
3. A
Expressão Facial na História
da Dança
Na História da Dança, a
expressão facial segue a sua evolução,
tendo adquirido um papel cada vez mais
importante, conforme a dança foi
caminhando para uma autonomia em relação
ao teatro e à palavra, não
estando, no entanto, sempre presente conscientemente
e, por vezes, sendo até preterida,
em relação à expressão
corporal.
Pode-se até distinguir entre uma
dança de expressão corporal
e uma outra, de expressão facial.
A primeira, é particularmente evidente
em danças de carácter ritual,
em que a expansão física
de energia é o objectivo principal.
Por exemplo, nos rituais ditirâmbicos,
em que as ménades se agitam sob
um estado de extâse, sentindo a
embriaguez divina de Diónisos e
expulsando dos corpos movimentos viscerais,
sem qualquer expressão consciente,
a não ser a sua paixão pelo
Deus. Já nos anfiteatros gregos,
o coro e as suas máscaras, parecem
significar uma valorização
do rosto, enquanto veículo de expressão,
que, neste caso, se quer homogeneizar
e neutralizar, para depois se evidenciar
ainda mais o primeiro actor. Este, ao
"despir" a máscara, acentua
a sua identidade e representa o início
da evolução da tragédia
grega.
A dança de expressão facial,
deriva de signos que se querem transmitir,
são a expressão consciente
da emoção e das ideias,
e está muito relacionada com o
teatro. Neste sentido, pode dizer-se que
este género se situa entre a dança
ritual e o teatro,derivando e adoptando
elementos do género teatral. No
entanto, esta dança que designo
por dança de expressão facial,
torna-se mais evidente muito posteriormente,
evoluindo paralelamente à dança
que se designa por clássica, ganhando
umpapel fundamental na dança moderna
e contemporânea.
Em certas culturas, a expressão
facial tem uma importância tão
marcada que os bailarinos demoram anos
a aperfeiçoá-la, para melhor
interpretarem as emoções.
É o caso dos actores da Ópera
de Pequim, na China, ou do teatro e dança
japonesa, o Kabuki, o Nô e o Kyogen.
Os actores sabem que, no silêncio,
a expressão facial transmite o
carácter psicológico da
personagem. Mas o caso mais evidente do
valor dado à expressão facial
e ao gesto, como símbolos de grande
significado, é o da dança
indiana. As rasas (emoções)
são categorizadas em nove tipos
maiores, principalmente usadas no Kathakali.
A thata, a técnica de mover os
olhos, a face, o pescoço, os ombros
e os braços, e os mudras, gestos
das mãos, são profundamente
simbólicos, representando os gestos
de Buda ou dos deuses do panteão
hindú, em especial, Vishnu e Shiva.

Fig.1- Representação
de Kathakali.
Na Idade Média, as expressões
artísticas sofreram alguns condicionamentos.
A dança e o teatro, fechados na
igreja, serviam funções
religiosas, transmitindo ao povo os textos
bíblicos, tornando-os mais atraentes
e persuasivos. Só a partir do século
XIII, com a procura do divertimento por
parte do povo e da nobreza, foram ganhando
forma outros tipos de dança, mais
com um carácter de libertação,
do que com qualquer significação.
Nas cortes, porém, e, principalmente,
a partir do Renascimento, a dança
foi adquirindo uma forma mais teatral,
estilizando os gestos nobres dos cortesãos,
e estabelecendo os padrões que
se foram desenvolvendo num maior academismo.
No século XVII, com Luís
XIV, esse academismo tornou-se um facto,
sendo a Ópera de Paris, um marco
para a história do bailado.
A partir do estabelecimento de um academismo
na dança, a evolução
deu-se no sentido de torná-la mais
completa e autónoma, e, com ideias
como a do ballet d'action, de Noverre,
a expressão de uma emoção
na dança, tornou-se um objectivo
comum a vários coreógrafos,
com a sua perfeita realização
no Romantismo.
4. Giselle,
um Exemplo Práctico...
Fig.2 - Olga Spessivtzeva,
como Giselle, numa fotografia com
a suave qualidade de uma litografia, que
conseguiu capturar algo da fragilidade
e espiritualidade da ballerina (Cyril
W. Beaumont, 1944)
Depois de La Sylphide, de Filippo Taglioni
(1832), considerado o primeiro bailado
romântico, Giselle surge como o
bailado mais importante do Romantismo.
Apresentado pela primeira vez em 1841,
com a coreografia de Jean Coralli e música
de Adolphe Adam, é o exemplo máximo
da expressão facial da emoção
na dança. Nesta primeira versão,
Carlotta Grisi é Giselle, uma jovem
do campo que se apaixona por Albrecht,
um príncipe que se mascara de camponês
para seduzi-la.
É um bailado em dois actos: o
primeiro, realista, "reflecte a cultura
operática romântica",
onde prevalece a pantomima. Giselle vive
apaixonada por Albrecht, mas, ao descobrir
a sua verdadeira condição,
enlouquece e, fragilizada pela doença,
morre. O segundo acto, o "acto branco",
é profundamente romântico,
onde surge o ideal feminino etéreo,
"sem peso nem carnalidade",
representado pelas willis, os espíritos
das jovens abandonadas e traídas
pelos namorados e condenadas a dançar
pela eternidade. Giselle é agora
uma willi, e Albrecht, corroído
pelos remorsos, vagueia pelo bosque e
é surpreendido pelo seu espírito.

Fig.3 - Olga Spessivtzeva,
em Giselle, Acto II (Ópera, Paris,
1932).
Todo o bailado é preenchido por
diversas tonalidades de emoções,
e cabe aos bailarinos, um controlo profundo
sobre as suas expressões, para
transmitir ao público, esta comovente
história de amor.
Se, como Darwin pensava, a própria
simulação de uma emoção
pode provocá-la efectivamente nas
nossas mentes, então aqui, se os
bailarinos se entregarem realmente à
sua interpretação, terão
que viver esta experiência, e, é
dessa forma que lhes é permitido
transmitirem-na ao público.

Fig.4 - Olga Spessivtzeva
na cena da loucura, Acto I.
Há diversos momentos no bailado,
em que a expressão facial é
determinante para acentuar a sua beleza.
Quando, na última cena do primeiro
acto, Giselle descobre a traição
de Albrecht e enlouquece, toda a sua expressão
que, de início, era de uma alegria
ingénua e pura, se transforma num
sofrimento intenso. Os cabelos que se
soltam, acentuam o olhar magoado e esgazeado
da jovem atraiçoada.
Os seus movimentos desesperados, que
culminam na sua morte, provocam o espanto
de toda a aldeia, e Albrecht, de súbito,
consciente do seu erro fatal, segura o
corpo morto da sua amada com desespero.

Fig.5 - Alicia Markova
e Anton Dolin no final do primeiro acto
de Giselle (Metropolitan Opera House,
Nova Yorque, 1943).
No segundo acto, a leveza etérea
das willis contrasta com a figura pálida
de Albrecht, que se consome de angústia
e dor. Quando, na oitava cena, Giselle
se lhe revela, os seus olhos cobertos
de lágrimas, fixam, incrédulos,
o estranho ser. Giselle está angustiada
por não poder amar jamais neste
mundo, Albrecht quer segurá-la,
mas é impossível,e Myrtha,
a rainha das willis, tenta envolvê-lo
numa dança exaustiva, que culminará
na sua morte. Giselle tenta salvá-lo,
pedindo-lhe que abrace a cruz do seu túmulo,
a sua única salvação.
Mas Myrtha, enfeitiçando-a, obriga-a
a dançar de forma a seduzi-lo e
a torná-lo de novo frágil
aos seus poderes. Giselle tenta lutar
contra o feitiço, mas não
consegue parar de dançar e Albrecht
larga a cruz, para se poder juntar à
sua amada.

Fig.6 - Alicia Markova
e Anton Dolin, no segundo acto de Giselle.
Os primeiros raios de luz começam
a clarear o bosque. As willis começam
a desaparecer e Giselle espera que o seu
amado consiga resistir à fadiga.
Também ela tem de regressar ao
seu túmulo e despedir-se de Albrecht.
O seu último desejo é o
de que se case com Bathilde, a sua noiva,
apontando para ela, que se aproxima com
a comitiva do palácio. Giselle
vai desaparecendo por entre as plantas
que rodeiam o seu túmulo.
É evidente o papel primordial
da expressão facial, para além
da gestualidade, na comunicação
das diferentes emoções das
personagens, e é fantástico,
como toda a interpretação,
sem palavras, nos pode fazer compreender
a história e comover-nos com ela.
5. Como
vai a Dança Contemporânea?

Não sou,de certo, a pessoa mais
indicada para falar sobre dança
contemporânea. Seria necessária
uma investigação mais profunda
e uma observação mais atenta
do que se passa hoje, na dança,
objectivo o qual se tornaria muito longo
para o presente trabalho.
No entanto, permito-me dizer que,
desde os primeiros passos para a dança
moderna, da qual Martha Graham é
uma importante precursora, a dança
tem caminhado para uma aproximação
ao teatro e à performance, dando
um novo sentido à expressão
facial e gestual como representação
de liberdade às restrições
da técnica clássica. Nomes
como Béjart, com o seu "bailado
de ideias", ou Pina Bausch, e o teatro-dança,
foram fundamentais no sentido de tornar
a dança como um veículo
de crítica social e de expressão
de valores.
É a necessidade de comunicar uma
representação do mundo que
transforma a dança, e são
essas ideias que transformam o mundo.
Porque vivemos um momento de profundas
mudanças, também a dança
manifesta essa realidade. Sempre manifestou,
porque estamos em constante mudança,
e é na emoção que
a mudança encontra a sua energia.
A emoção é transformação.
Em Portugal, nos últimos tempos,
a dança tem evoluído positivamente,
com uma série de novos coreógrafos
que tentam inovar, mudar o mundo, mudar
as pessoas, mudar-se. Também aqui,
a performance e a expressão teatral,
têm uma grande importância
na transmissão de um significado.
João Fiadeiro, por exemplo, que,
para além de coreógrafo,
é um "pensador" do mundo
e da arte, e das suas íntimas relações,
transmite sempre, nas suas obras, a sua
própria visão da dança
como uma emoção, que não
tem, necessariamente, que "passar
pelo corpo".
A sua obra, muito próxima do teatro,
explora a expressão facial de uma
forma muito forte, quase agressiva, com
uma intensa carga irónica e provocadora.

Fig.9 - João Fiadeiro,
Self(ish)-Portrait (1995)
Rui Horta, extremamente interessado pelos
gestos e objectos quotidianos, é
primoroso a transmitir as nossas próprias
emoções e pensamentos triviais,
escondidos pela nossa máscara social,
faz-nos rir de nós próprios,
em peças de um humor deliciante.
Muitos mais coreógrafos têm
dado nova luz à dança contemporânea
portuguesa, representando, parece-me,
uma grande transformação
para o nosso cenário artístico.
Penso que a expressão facial tem
servido a arte, nos últimos tempos,
na sua tendência para se tornar
numa poderosa arma de transformação
social e cultural, e sei que o tem conseguido
realizar e que o continuará a fazer...
6. Bibliografia
PASI, Mario. A Dança e o Bailado,
guia histórico das origens a Béjart.
Caminho, Lisboa, 1991.
BEAUMONT, Cyril W. The Ballet called
Giselle. Dance Books, Londres, 1996.
FAZENDA, Maria José. Movimentos
Presentes, aspectos da dança independente
em Portugal. Cotovia, Lisboa, 1997.
Iconografia
BEAUMONT, Cyril W. op. cit.
ELLIE, Marie-Pierre. La Passion de la
Danse. Gründ, Paris, 1978.
Consultas na Internet
http://member.nifty.ne.jp/kkudoh/HowToSeeTheatreAndADance.htm
http://www.britannica.com/Facial
expression in Dance
Ilustrações
Capa - Marie Taglioni, La Sylphide (Acto
I). Litografia de A. E. Chalon, 1846.
Fig.8 (p.11) - Christopher Bruce, em
Pierre Lunaire, de Glen Tetley (Ballet
Rambert, 1962). |